segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Ecofilosofia

 

 

Consumo consciente - Uma realidade em construção

Por Elias Fajardo*

O consumo está no centro da sociedade contemporânea. Para as ciências biológicas, todos os seres vivos consomem, pois se alimentam e usam recursos naturais com mais ou menos intensidade. Daí a ligação forte entre o ato de consumir e a preocupação com o meio ambiente. Já na área das ciências econômicas, consumir significa usar bens e serviços para satisfazer necessidades.

Para viver, o ser humano precisa, basicamente, de alimento, abrigo, afeto e alegria. Mas a vida em sociedade se tornou cada vez mais complexa, surgiram necessidades baseadas em desejos e fantasias nunca totalmente satisfeitos e que variam de uma pessoa para outra e também no tempo e no espaço.
Em seu livro “A sociedade em rede”, o cientista social espanhol Manuel Castells diz que as sociedades se organizam em relações de produção, experiência e poder. Produzir é se apropriar dos recursos naturais e transformá-los, obtendo algo para ser consumido e acumulando o excedente.
Experiência são os conhecimentos reunidos ao longo da história, o que inclui também modificações que provocamos em nós mesmos através da interação com o meio ambiente. Ao descobrir que pode plantar os alimentos em vez de apenas colhê-los em florestas e campos, o homem modifica seu modo de vida e valores.

Já o poder nasce da relação entre os homens, em que uns impõem sua vontade aos outros. Quem produz mais e quem detém mais experiência e conhecimento tende a dominar ou simbolicamente ou pela força.
Em “A sociedade de consumo”, o teórico francês Jean Baudrillard afirma que, no nosso mundo fragmentado, o principal terreno da atividade social deixa de ser a produção e passa a ser o consumo. Para Baudrillard, os produtos têm uma capacidade de significação que os consumidores transferem para dentro de si por intermédio da manipulação de diferentes códigos que são criados pelos profissionais de marketing.

Acessar em vez de ter
Nas sociedades ditas primitivas - das quais as tribos indígenas do Alto Xingu (MT) são um exemplo - as pessoas consomem o que conseguem na natureza. Não fabricam objetos para vender e a noção de trabalho é distinta: o primordial não é trabalhar para si, mas dedicar-se a uma atividade que possa suprir as necessidades de todos. Nessas sociedades, a comunidade se apropria do excedente em festas e rituais. Por isso se diz que nelas consumo e produção andam juntos. Isso não quer dizer que os indígenas resolvem de maneira melhor ou pior as grandes questões, mas apenas que o fazem de forma diferente.
Na nossa sociedade, produção e consumo são distintos e dissociados, segundo o economista austríaco Karl Polanyi, que correlaciona as economias nacionais à sociedade e à cultura nas quais elas se inserem. Assim, hoje existiriam duas categorias de pessoas: os vendedores, que inclui aqueles que produzem para vender, que comercializam, prestam serviços etc.; e os consumidores, que compram os produtos. As relações entre eles variam segundo a época e de acordo com a estrutura dos grupos sociais.

Polanyi morreu em 1964 e de lá para cá a discussão evoluiu bastante. Hoje, em vez de vendedores e consumidores, teríamos fornecedores e usuários. Não compramos mais um telefone, mas pagamos pelo direito de usá-lo, quase sempre a uma empresa. Também quase não se paga mais para consultar um médico, mas para usar um plano de saúde. O acesso a um bem ou serviço está se tornando mais importante do que a propriedade dele.

Nascimento da sociedade de consumo
Alguns momentos marcam a transformação da sociedade industrial capitalista em sociedade de consumo. O primeiro foi no final do Século 19, com o crescimento mercantil e técnico desencadeado pela Segunda Revolução Industrial. Em 1909, a empresa de Henry Ford criou a linha de montagem para fabricar automóveis e barateou o custo dos veículos. A produção em massa se expandiu e isso ajudou a consolidar o consumo em escala mais ampla.

O segundo momento foi a crise econômica mundial de 1929, que provocou desemprego em massa e também a criação de Leis que permitiram elevar salários. Expandiu-se a consciência de que o crescimento da demanda – consumidores com dinheiro para gastar – aquece a economia. Nos países capitalistas, a valorização da demanda interna se consolidou entre o final da década de 1940 e a de 1970.
A construção de estradas de ferro, a produção de armas e o desenvolvimento da indústria pesada foram fundamentais para construir a sociedade industrial. Mas na medida em que esta sociedade amadurece, o consumo pessoal passa a desempenhar um papel cada vez mais importante e parte substancial do orçamento doméstico começa a ser usada não só para adquirir uma geladeira ou televisão, mas para comprar bens e serviços como lazer, informação, educação, moda etc. Neste cenário, a revolução científica e tecnológica ocorrida logo após a Segunda Guerra Mundial favorece o desenvolvimento do consumo de massa em todos os níveis.

Para novas realidades, novas formulações e reflexões. E na área da sociologia e da economia se consolida o conceito de sociedade de consumo, usado hoje para definir um grupo social vivendo em estágio avançado de desenvolvimento industrial. Tal sociedade está ligada à economia de mercado, que busca equilibrar a oferta e a demanda por meio da livre circulação de capitais e produtos, sem intervenção direta do Estado. Mas o consumidor atual é bastante diferente daquele de 30 anos atrás. Ele adota um estilo de vida baseado em sua vontade de consumir e na capacidade econômica para sustentar seus hábitos.

Balanço das tendências
Os críticos da sociedade de consumo dizem que ela transforma o consumidor em um ser passivo diante da agressividade do marketing. Trabalhamos para comprar algo que não nos é de grande utilidade e depois temos de trabalhar mais ainda para pagar as dívidas. A sociedade contemporânea se divide então entre quem está angustiado por trabalhar muito e os que estão deprimidos por não conseguir emprego. Neste modelo, os países menos desenvolvidos se dedicam basicamente a satisfazer o superconsumo dos países desenvolvidos, sem atender às necessidades essenciais de suas próprias populações.

Atualmente, algumas dessas críticas estão sendo reavaliadas e surgem novos enfoques. O ato de consumir tende a deixar de ser visto como sinônimo de atitude alienada e passa por novas interpretações. Uma delas considera que exercitar o consumo faz parte da cidadania e pode ser até uma forma de protesto, pois nele está embutido um desafio. Escolher mercadorias significa orientar-se com base em um conjunto de valores; eleger um bem ou um objeto implica rejeitar outros cujas maneiras de produção o consumidor não aprova. Assim, dentro do próprio modelo da sociedade de consumo, desenvolvem-se formas colaborativas de discutir e atuar. Exemplo: consumidores organizados que compram coletivamente e entram em contato direto com pequenos produtores de alimentos orgânicos de agricultura familiar. No Rio, São Paulo e Paraná existem vários desses grupos. Um deles é a Associação de Consumidores de Produtos Orgânicos do Paraná (ACOPA), com cerca de 500 associados, que fez uma pesquisa sobre os consumidores orgânicos conscientes de Curitiba. Cerca de 66% são mulheres, 58% têm nível de instrução elevado e mais da metade frequenta semanalmente uma feira orgânica.

A necessidade de defender interesses comuns levou também à criação do Fórum Nacional de Entidades Civis de Defesa do Consumidor, que congrega mais de 30 instituições nos Estados brasileiros.
As reflexões sobre o tema não param de se desdobrar. Segundo a socióloga Fátima Portilho, as teorias que discutem o consumo podem ser divididas em três grupos: a primeira tem a ver com a tradição marxista e afirma que o consumidor não escolhe o que comprar, e sim é escolhido pela produção. Ou seja, ele consome produtos criados por outros que, ao produzi-los, têm como objetivo o lucro.
A segunda corrente considera o consumidor um ser soberano e racional, com grande capacidade de escolha. E a propaganda procura viabilizar aquilo que o consumidor deseja. Representada principalmente por autores ligados à administração e marketing, esta tendência defende a ideia de que, ao lançar um produto, é preciso pesquisar muito para saber o que o usuário quer. Assim, o consumidor estaria determinando as regras do jogo.

O terceiro grupo tem uma abordagem culturalista, encara o consumo como prática que produz e reproduz relações sociais entre as pessoas e sua cultura material. E como ele está no centro da economia contemporânea, o consumidor tende a desempenhar um papel ativo. Segundo Fátima Portilho, “o consumidor está ganhando poder, mas não sei que direção essa tendência vai seguir. Em alguns países, como Estados Unidos, seus direitos já são bastante respeitados. No Brasil, além do Código de Defesa do Consumidor, existe o Juizado Especial Civil, no qual podemos acionar uma empresa sem contratar advogados. A Justiça ainda é muito demorada. Viabilizar direitos dá muito trabalho, mas vale a pena, pois tem a ver com nosso futuro comum.”

A crise econômica mundial de 2008 engendrou a oportunidade de repensarmos nossos padrões de consumo. As pessoas começaram a adotar um novo modelo de compras: ao mesmo tempo em que preferem lojas com descontos, investem também em adquirir bens e serviços que possam lhes dar gratificação emocional. Nesse cenário, gratificação emocional significa ficar satisfeito com o que se pode obter e entender que é ótimo consumir sem se endividar. O pouco é bom, indica esta tendência que está crescendo no mundo. Ninguém está interessado em abrir mão do conforto e das coisas boas que a civilização propicia, mas apenas em ampliar nossos níveis de consciência sobre o ato de viver e de se colocar no mundo. Assim transformamos o ato de consumir em exercício de liberdade em todos os sentidos, principalmente de escolha.


*Elias Fajardo é autor do livro “Consumo consciente, comércio justo – conhecimento e cidadania como fatores econômicos”, do SENAC Nacional, nas livrarias ou através do SENAC Rio (comercial.editora@rj.senac.br) e Editora SENAC São Paulo (editora@sep.senac.br). O livro será lançado no Festival de Gastronomia e FestViola de Piacatuba (MG) em 28/7/2010 e na Usina Cultural de Nova Friburgo (RJ) em Novembro.

Fonte: Revista Eco 21

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